terça-feira, 31 de agosto de 2010

As mulheres, os carros e os homens

                                                    imagem retirada da internet

A filha passa por casa do pai para o ir buscar. O pai entra no carro da filha com esta ao volante. Senta-se no banco do passageiro e olha-a. Tentando dar um ar natural, pergunta:

-       Queres que leve o carro?
-       Não pai, obrigada.
-       De certeza?
-       De certeza pai.
(silêncio)
-       Porquê que não queres?
-       Porque eu estou bem, posso conduzir.
-       Eu não disse que tu estavas mal, só perguntei se querias que levasse eu o carro.
-       Eu sei que não disseste que eu estava mal, mas o carro é meu, por isso levo-o eu!
-       Eu sei que o carro é teu, não preciso que me lembres.
-       Oh... vá lá, não sejas assim! O carro é meu, eu estou bem e sei conduzir, porquê que havias tu de levar o carro?
-       Eu sei que tu sabes conduzir! Eu não estou a dizer que tu não sabes conduzir! Só perguntei se querias que fosse eu a levar o carro!
-       E eu respondi: não obrigada.
-       Pronto! Não queres, não queres! 
      
      Faz-se um silêncio sepulcral. A filha põe a chave na ignição e liga o carro. Mete a mudança para fazer marcha atrás. Sai do lugar de estacionamento e mete a primeira para sair dali.  Deve ter passado um minuto desde o fim do dialogo e ainda ela não tinha engatado a segunda quando o pai pergunta:
      
  - De certeza que não queres que leve o carro?


segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Era uma vez (4/4)


                                       imagem retirada da internet

Chegado de volta à floresta de origem, tratou de arranjar um lugar onde se abrigar, ainda que temporariamente.
Depois de uns dias a digerir toda a situação resolveu procurar o velho mocho para lhe pedir uns conselhos.
O velho mocho tinha uma aparência um tanto peculiar: uns olhos escuros, olhar sério mas afável. As suas penas eram de vária tonalidades entre o branco e o castanho, com algumas nuances de preto a contornarem-lhe a cabeça.  As suas orelhas estavam sempre em posição de alerta, o que lhe conferia um aspecto quase cómico quando estava com os olhos semi-cerrados dando a ideia que estaria a meditar...
Sentia-se pouco à vontade com o ar tão sério que o mocho tinha, mas todos os animais lhe tinham dito que ele era o melhor conselheiro da floresta e por isso, ainda que intimidado, lá arriscou.

-       O que te trás por cá? -  perguntou o velho mocho sem se mexer.

O pássaro deu um salto com o susto pois pensava que o mocho estava... estava noutra dimensão!
Não sabia bem por onde começar a sua história... então será que não se nota pelo meu mau aspecto, pensou, pensei que seria óbvio!
Como se o mocho não se mexesse, o pássaro lá foi contando o que lhe aconteceu e por fim lá confessou que gostava de saber como construir um ninho à prova de toda e qualquer intempérie possível.

-       Esse ninho não existe – respondeu o mocho – tu é que tens que estar preparado para as adversidades e não esperar que um ninho te proteja daquilo para o qual não te preparaste.
-       Bom, então como me preparo para as desgraças que ainda me vão acontecer – pergunta o pássaro com olhar triste e um tanto desiludido com a resposta.
-       Eu não sei o que te vai acontecer nem se te vai acontecer mais alguma coisa, apenas disse que tens que estar preparado! E o teu grande problema é não acreditares que consegues construir outro ninho, por isso usas ninhos abandonados. Enquanto não acreditares que o teu ninho, o ninho que tu construires é tão ou melhor que os ninhos construídos por outros, não vais ter tranquilidade. Nesse dia, no dia em que acreditares que consegues,  as feridas resultantes do incêndio vão começar a sarar, tornar-se-ão menos visíveis e menos profundas até cicatrizarem. As cicatrizes não desaparecerão mas, com o tempo, aprenderás a conviver com elas e nesse dia as tuas penas voltarão a nascer.

O pássaro não respondeu ficando a pensar no que acabara de ouvir.

-       Já agora – acrescentou o mocho – por acaso sabes o significado da palavra “Fénix”?
-       Não faço a menor ideia – respondeu o pássaro sem perceber a pergunta
-       O que renasce das cinzas – disse o mocho – e tu és uma Fénix, logo, tens tudo o que é necessário para renascer.
-       Eu?! – perguntou  o pássaro atordoado com a novidade – Eu sou uma Fénix?... Eu sou assim?...

Fénix agradeceu ao mocho os conselhos dados, prometendo ter paciência, saber esperar e acima de tudo
acreditar que um dia iria sentir a mudança.

domingo, 15 de agosto de 2010

Ele e Ela

Estava calor.

Ele caminhava pelo meio da vegetação.
Por breves instantes fechou os olhos e sentiu a brisa.
Sentiu a suave e delicada fragrância das flores misturada com o odor característico da terra seca.
Sentia-se em forma e apetecia-lhe companhia.
O seu corpo forte e musculado fazia sucesso no meio delas.
Sentiu-se confiante.
Olhou à sua volta e percebeu que estava só.
Por onde passava foi deixando objectos seus dando a entender que estaria por ali.

Ela chegou e percebeu que ele estava por perto.
Olhou para as peças dele e gostou do que viu.
Fechou os olhos e com elas percorreu o rosto.
Passou-as levemente pelos seus lábios entreabertos.
Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo.
Sentiu-se excitada com o cheiro e com a suavidade que sentia.
Olhou à sua volta, procurando-o, mas sem sucesso.

Ele aproximou-se.

Olharam-se.
Ele aproximou-se mas ela com olhar de menina traquina afastou-se docemente.

Ele não lhe tirava os olhos.
Como era bela.
Olhos grandes e negros, pestanas compridas.
Olhar matreiro.
Corpo perfeito.

Ela encaminhou-se para um riacho.

Ele seguiu-a com os olhos.

Ela bebeu água.
Sentiu a água a escorrer-lhe pelos lábios, indo para o pescoço e escorrendo até ao  peito.

Ele seguiu com o olhar o percurso da água que lhe escorria.
Estava embevecido.
Suspirou...

Depois de se saciar ela afastou-se do riacho.
O seu corpo era gracioso e caminhava de forma muito sensual.
Caminhou suavemente na direcção dele.
A meio do caminho parou e olho-o nos olhos.
Fez-lhe um olhar que ele bem conhecia.

Ele aproximou-se dela com suavidade.
Sentiu todos os pêlos do seu corpo eriçados.
Gentilmente tocou-lhe e sentiu a respiração dela acelerar.

Tinha, por fim chegado, a hora.

Ele não sabia bem.
Ela sabia, pelo menos instintivamente.

A natureza não lhes perdoaria.

Em breve seriam pais de um lindo alce.



sábado, 7 de agosto de 2010

Era uma vez (3)

Acordou com a chuva. Sentiu um arrepio. Olhou à volta e viu os outros animais da floresta indiferentes à chuva. Não gostava de frio nem de chuva e aquela talvez não tivesse sido a melhor escolha mas, dadas as circunstâncias, isso era o que menos o preocupava neste momento.

Os primeiros dias custaram muito a passar. Fazia um grande esforço para se distrair e para comer. Se os esforços em se distrair ainda resultavam o mesmo não se podia dizer dos esforços para comer. Era impossível. Valia-lhe a água que ia bebendo e os frutos que conseguiam disfarçar que eram comida... quanto mais aquosos melhor. Perdeu peso. Sabia que era essencial manter o peso para que as penas voltassem a nascer, mas nem assim. A dor era mais forte que a vontade de ter penas. Pelo menos por enquanto.

Os dias foram passando e ele começou a pensar se não seria boa ideia ficar naquela floresta definitivamente. Para isso bastava que conseguisse um ninho seu numa árvore desabitada. Parecia-lhe simples e esta ideia começou a animá-lo; vida nova, floresta nova, tudo novo.
Sempre teve um desejo secreto de aventura e agora parecia-lhe o momento adequado de arriscar, afinal não tinha nada a perder... já tinha perdido tudo.
Foi procurar uma árvore nova. Não encontrou. Perguntou aos seus novos vizinhos se sabiam de alguma árvore desabitada. Havia muitas, responde um deles, mas a semana passada chegaram novos animais e ocuparam-nas... devias ter procurado mais cedo, acrescentou. Procurou e fartou-se de procurar. Sem sucesso. Procurou em florestas vizinhas e nada. Nem uma árvore havia, por mais pequena que fosse. Estavam todas ocupadas.

Percebeu que não tinha alternativa e que teria de regressar. A tristeza voltou a invadi-lo. Eu não quero ir, pensava, não quero voltar a ver tudo aquilo. E por mais esforços que fizesse para não regressar, nada surtia efeito. Tentou tudo. Sempre. Até ao dia da partida,  e quando esse dia chegou, resignado, regressou à sua floresta de origem.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Homens Modernos, precisam-se

Normalmente estou a horas indecentemente tardias a fazer o jantar. 
Quer isto dizer que frequentemente já a noite caiu e as luzes das casas estão acesas. Há gente que não tem por hábito correr cortinas ou fechar estores quando acendem a luz. 
Quer isto dizer que quem está de fora vê tudo o que se passa dentro da casa dos outros...

Da janela da minha cozinha vejo, entre outras coisas, a janela da cozinha de muita gente e quando acendem a luz ainda vejo melhor :D

Talvez por não ser comum, sempre me chamou à atenção ver, numa determinada cozinha, sempre um homem a trabalhar “como gente grande”.  Confesso que no início pensei que o homem vivia sozinho. Claro que isto soa mal, não sou de todo defensora dos papeis tradicionais familiares, mas há que reconhecer que não é comum; é que o homem, como tantos que conheço, não se limita a fazer o jantar ou a lavar a loiça ou a lavar o fogão ou a estender a roupa, ou, ou, ou.... Não, é mesmo: e, e, e,.... e eu nunca vi mais ninguém naquela cozinha dai pensar que o senhor vivia sozinho.  

Um dia destes chamou-me á atenção umas peças de roupa estendida que, não sendo invulgar, havia umas peças cor-de-rosa... 
Bom, o rosa há muito que não é exclusivo das mulheres, pensei. 
O senhor pode gostar... mas aquilo fez-me uma certa... digamos, impressão. Ainda que só o vendo ao longe, não me parecia ser propriamente o estilo dele. Uns dias depois vejo uma saia estendida entre outras peças que me pareciam femininas e pareceu-me ainda mais improvável serem dele, mas há gostos para tudo!... 

Dias mais tarde confirmo a suspeita: enquanto o senhor esfregava o fogão com um vigor invejável, uma senhora varre o chão da varanda da cozinha enquanto fuma um cigarro.

Onde é que ela o foi buscar?...



segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Cântico Negro

Ora aqui está um poema que me assenta que nem uma luva: 

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

domingo, 1 de agosto de 2010

Era uma vez (2)

Ao sentir uma picada abre os olhos e vê um bichinho minúsculo a saltitar em cima da sua asa nua. Dá-lhe uma sapatada mas não o apanha; o bichinho desapareceu no meio do ninho.  Levanta-se para ver se o encontra. Assim que se levanta tem uma visão assustadora: o seu ninho está cheio de parasitas!!!

Abriu os olhos, olhou à sua volta e lembrou-se que a sua gaiola tinha sido queimada no dia anterior. Tinha passado a noite num ninho abandonado. Que estranho sonho, pensou, ainda por cima não costumo lembrar-me dos sonhos...
Deambulou à volta do ninho e concluiu que não tinha capacidade de tomar nenhuma decisão. Era tudo demasiado recente e ainda estava muito atordoado. Tentando racionalizar as emoções, concluiu que o melhor era afastar-se por uns tempos.

Chegou à nova floresta ao final do dia. Apesar da viagem ter sido longa, não sentiu a fome nem o cansaço. Era verão e o sol ainda espreitava no horizonte. Sempre gostou muito de ver o sol, mas hoje, este sol tinha um sabor diferente: ainda que continuasse a sentir o seu calor, sabia a melancolia, a incerteza, a insegurança. Com os olhos postos no horizonte, questionava-se. Continuava a questionar-se sobre os últimos acontecimentos e não conseguia ter nenhuma resposta.
A noite caiu e as estrelas apareceram no céu; também elas hoje tinham um sabor diferente.  Mesmo sabendo do risco de voar durante a noite numa floresta, ignorou esse perigo; tinha de voar um pouco mais, voar até não aguentar mais e cair de cansaço num qualquer ninho sem dono. E voou, voou, voou... e quando já não podia mais deixou-se cair e adormeceu.